quarta-feira, 4 de julho de 2012

Nascidos em 4 de Julho (Independência dos EUA)

Sonhando com o inimigo

Para se viabilizar como nação, americanos elegem adversários – indígenas, comunistas e terroristas – desde a Independência, em em 4 de julho de 1776

Leandro Karnal



Tendo atrás a estátua do presidente Lincoln e à frente o obelisco que homenageia George Washington, em 28 de agosto de 1963 o pastor Martin Luther King Jr. fez um discurso histórico: “Eu tenho um sonho”.  Combatendo o racismo da sociedade norte-americana, o futuro Prêmio Nobel da Paz usou uma imagem interessante para definir o episódio da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776: uma espécie de cheque a ser descontado pelas gerações futuras do país.
O líder dos direitos civis explicou que o cheque, levado ao banco por mãos negras, voltou com a marca “fundos insuficientes”.  O discurso foi um protesto contra este estelionato, pois os afrodescendentes ainda lutavam por seu 4 de julho, 187 anos depois da ruptura com a Inglaterra. Em defesa do voto feminino, mulheres recorreram a argumentos semelhantes, assim como os conservadores do século XXI do Tea Party – grupo político republicano conservador – invocam o espírito da Independência ao proclamar suas ideias e projetos.
 Esse sentimento vem de longe. Fundadas no século XVII, as 13 colônias inglesas da América do Norte foram abandonadas à própria sorte, pois a Inglaterra estava ocupadíssima com crises internas, especialmente a sua guerra civil, quando o Parlamento liderou a luta contra o absolutismo dos reis Stuart. No século XVIII, tudo mudara. Estável e rica, a Inglaterra dava os primeiros passos da industrialização.  As colônias teriam um novo papel.
John Hancock chegou a exagerar o tamanho da assinatura na Declaração
para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de humor
Foi a partir de 1764, quando o Parlamento de Londres endureceu e reafirmou seu papel de metrópole no controle das colônias, que as lideranças do Novo Mundo iniciaram os boicotes e protestos violentos contra a ordem reinstaurada. As leis inglesas passaram a restringir o comércio e a liberdade das colônias americanas, como a lei do açúcar e a do chá. As hostilidades evoluíram para choques armados e, em 4 de julho de 1776, para espanto do mundo, congressistas reunidos na Filadélfia proclamaram a Independência, fato até então inusitado no Novo Mundo. O princípio revolucionário de que “todos os homens foram criados livres e iguais” tornara-se concreto pela primeira vez na História.
Quando homens brancos e ricos puseram suas assinaturas na declaração formal de independência, estavam rompendo o modelo político colônia-metrópole. John Hancock (1737–1793) chegou a exagerar o tamanho da assinatura para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de humor, porque todos conheciam a força do império. A posteridade, no entanto, rendeu homenagem à ousadia e Hancock virou sinônimo de assinatura.
Para nós, brasileiros, a comparação é interessante [Ver RHBN nº 66]. O gesto simbólico da nossa Independência de 1822 foi pintado em “O grito do Ipiranga” somente em 1888, por Pedro Américo. No quadro, foi cristalizado o imaginário bem digerido em textos didáticos e em filmes: D. Pedro grita, de forma romântica e passional: “Independência ou Morte!” Já a cena da Filadélfia, também representada no século XIX por John Trumbull (1756-1843), recorre à tinta racional: homens discutem e definem os motivos pelos quais são levados ao ato da ruptura. Dois momentos e dois países diferentes.
O príncipe Pedro estabeleceu mais um slogan do que um programa. Os EUA nasceram a partir de uma declaração pormenorizada, com princípios iluministas de liberdade para todos, igualdade, e considerando a felicidade como um direito universal. O que ocorreu nos séculos seguintes foi, sistematicamente, a busca desta utopia. Uma espécie de guia para deixar uma construção teórica e formal de liberdade e caminhar na direção de conquistas concretas, como a do voto feminino ou dos direitos dos negros. Querendo ou não, fazendeiros, escravocratas, comerciantes e profissionais liberais daquele salão na Filadélfia estabeleceram a base de uma agenda de 200 anos de protestos.
Diferentemente do processo americano, a Independência do Brasil foi apropriada pelo Estado e, apesar da participação popular em alguns episódios, como as lutas da Bahia [Ver RHBN nº 48], sempre foi considerada herança governamental e responsabilidade oficial. O processo de ruptura entre as 13 colônias e a Coroa britânica foi incorporado mais amplamente. O 7 de setembro (lembrança da independência brasileira) e o 4 de julho (norte-americana) sempre seriam muito diferentes: oficial o primeiro e popular o segundo.
Na própria Declaração de Independência,
os colonos reconhecem que seria melhor deixar tudo como estava
Da memória da independência dos EUA retiram-se metáforas, exemplos e propostas de ação que servem desde recusa conservadora da presença do Estado na economia, como prega o Tea Party, até a proposta de maior inclusão do negro na sociedade, caso do “Eu tenho um sonho”.  Nos dois casos, a disputa pela memória existe porque o processo é muito amplo e permite adaptações e usos diversos. É possível exigir, como fez Martin Luther King, que o Estado promova uma política efetiva contra a segregação racial em nome dos “pais fundadores”. Também é igualmente possível exigir que o Estado não lance novos impostos, respeite a iniciativa privada e o direito do indivíduo de prosperar. Desta maneira, 1776 é um signo aberto, ou seja, pode ser associado a diversos contextos. Cada momento ou grupo conseguiu, quase livremente, constituir seu ideal do que tenha sido a “essência” do 4 de julho.
Como toda unidade nacional, a dos EUA foi fruto de elaboração variada e histórica. Para formar uma nação com um mínimo de coesão, foi sempre necessário combater um perigo externo: os ingleses do século XVIII, os índios do XIX, os comunistas do XX ou os atuais “terroristas islâmicos” deste início do XXI. Todos serviram de poderosos catalisadores para viabilizar a nação.
A realidade das 13 colônias era de profunda variedade religiosa, econômica e social. Em 1776, não havia nada próximo de um país. O esforço inicial dos colonos no processo de luta contra o Parlamento inglês foi o de pertencimento. Seus documentos pedem reconhecimento de seus direitos como parte viva e igual do império britânico. Na própria Declaração de Independência, os colonos reconhecem que seria melhor deixar tudo como estava, já que não havia um sentido claro da Coroa britânica em prejudicá-los.
  Feita a Independência, restava o desafio de construir uma nação. Valores como igualdade tinham de ser redefinidos dentro de limites socialmente seguros. Símbolos deveriam ser inventados. Tratava-se de dar forma a uma comunidade surgida a partir de uma guerra.
O país que tinha nascido sem nome teria sua diversidade aumentada enormemente com a imigração. Como constituir uma nação e criar instituições com navios despejando lituanos, italianos, espanhóis e irlandeses todos os dias? Sem resolver a complexa questão, uma das respostas foi a guerra.

Lutar contra o outro forja um dos sentimentos mais intensos de identidade. Permite a um grupo, irredutível na sua alteridade, sentir a continuidade e a força do objetivo comum. O coletivo aumenta a força, justifica a violência e dilui responsabilidades.
A história americana pós-1776 estabeleceu com clareza quem seria o outro, o inimigo, mas nunca conseguiu  definir com nitidez quem seria o americano. Este é o grande desafio até hoje, quando a excepcionalidade americana é cada vez menos reconhecida. Resta o “admirável mundo novo” (brave new world: expressão da peça “A Tempestade”, de Shakespeare), que, por sinal, nasceu de ideias contidas no sonho da Independência dos EUA.

Leandro Karnal é professor de História da América na Universidade de Campinas, autor de Estados Unidos: A formação da nação (Ed. Contexto, 2005) e coautor de História dos Estados Unidos (Contexto, 2007).

Saiba Mais:
BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução América. Bauru: Edusc, 2003.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Cia. da Letras, 2005.
DRIVER, Stephanie Schwartz. A Declaração de Independência dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MCCULLOUGH, David. 1776: A história dos homens que lutaram pela independência. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

Artigo disponivel no site :  
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/especial-independencia-dos-estados-unidos-sonhando-com-o-inimigo

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