Nashla Dahás
30/11/2012
Ao se adaptar às necessidades locais da sociedade brasileira, as religiões evangélicas vem conquistando cada vez mais espaço no país.
Colonizado e cristão, miscigenado e avesso a Revoluções, o Brasil evangélico adapta a crença em seus mitos fundadores e difunde um protestantismo que pretende conquistar o mundo.
Ao final dos anos de 1950, Nelson Rodrigues tornou conhecida a expressão “complexo de vira-latas” para falar da suposta inferioridade a que o brasileiro se colocava diante do mundo. Tratava-se, naquela ocasião, de uma crônica sobre futebol, mas funcionaria durante muito tempo como um deboche do atraso brasileiro, o país do eterno futuro, cheio de potencialidades naturais e de “cordialidade”, mas incapaz de resolver seus problemas mais antigos como o analfabetismo e a fome.
Coincidência ou não, entre os anos 50 e 70, a população evangélica daria uma salto de quase 70% em relação ao período anterior, acompanhada pela modernização conservadora durante a ditadura militar, e pela explosão mundial de movimentos sociais em defesa da liberdade de expressão, dos direitos das minorias e da negação da guerra. Um por um, os temas da agenda social brasileira e mundial foram gradualmente incorporados à pregação protestante tradicional: o pastor abre as portas da Igreja como as de sua própria casa, possui a autoridade de um pai ao acolher o cidadão mais desamparado pelo Estado e pela sociedade; oferece-lhe uma família para pertencer, eventualmente emprego e orgulho próprio, e um objetivo de vida, uma missão: mostrar ao mundo o caminho da salvação.
Podia ter dado certo ou não, como ocorre igualmente nos processos históricos e na vida, mas em fins da década de 1980, a redemocratização no Brasil e a vitória do capitalismo no mundo, contribuíram com importantes ferramentas: a legítima liberdade de crença religiosa, o livre acesso aos meios de comunicação e a consolidação do modelo liberal de sociedade de massa: cada um por si e pelos seus.
Contudo, o Espírito Santo, ou para os mais céticos, o senso de realidade e de oportunidade de alguns pastores e igrejas escapou à observação restrita às fronteiras e à conjuntura, e enxergou o impacto da fragmentação global. Conflitos étnicos, desemprego generalizado e a desarticulação da família tradicional não desfrutam mais da opção dos projetos revolucionários, o Estado tornou-se autoridade menos capaz com o aprofundamento da globalização, e a política é hoje um terreno cada vez mais desacreditado pelos jovens. Nascidas no dia a dia da batalha que cada fiel pentecostal trava com a realidade brasileira, explicada pela demonização de seus mais diversos reversos, as igrejas evangélicas oferecem à América Latina, Ásia e África uma nova utopia. Sem revoluções, imposição ou violência, elas agem pela conversão e crescem sempre de baixo para cima, raramente seduzem as elites nos primeiros encontros, misturam com alguma facilidade a sua fé aos aspectos mais tradicionais das igrejas predominantes, e transformam a religião em uma identidade conquistada e vencedora, pois que escolhida para levar a palavra de Deus aos incrédulos.
Na África e na América Latina, as proximidades da língua parecem ajudar no crescimento das igrejas brasileiras, sempre associadas a outros elementos, específicos em cada país. Pesquisadores apontam que nessas regiões os cultos são realizados em proporção de 40% na língua local, e 60% em português, atraindo também os grupos de imigrantes brasileiros.
Na Argentina, é possível que as sucessivas crises econômicas, somadas ao desgaste no orgulho das classes médias, contribuam para uma aceitação das igrejas bem maior do que no Chile, onde o catolicismo ainda é profundamente identificado com uma distinção de classe. Bolívia, Peru e México apresentam um índice de crescimento pentecostal marcadamente entre as populações indígenas, para as quais há um trabalho direcionado por parte de algumas igrejas, e minuciosamente acompanhado pela SEPAL (Servindo aos pastores e líderes), missão internacional que avalia e difunde o crescimento evangélico no Brasil há mais de 30 anos. No site da instituição/Rede é possível ter acesso às chamadas “missões transculturais”, cujos objetivos variam de acordo com as regiões de destino e a formação dos missionários. Estes, são atualmente cerca de 600 e incluem teólogos, professores, antropólogos, administradores, entre muitos outros espalhados por quase 70 países do globo.
A motivação mais comum a levar essas pessoas para lugares tão distantes de suas raízes é a “batalha espiritual”: cada povo não cristão seria vitima de um tipo de demônio como a pobreza, a violência, a exclusão, o neocolonialismo, o desemprego, a solidão, etc. Mas entre os horrores contemporâneos, existe ainda uma hierarquia que alça ao seu topo o islamismo e as religiões orientais. Daí a existência da chamada “Janela 10-40”; segundo a qual a maior concentração de pessoas do globo terrestre que ainda não “encontrou Jesus” localiza-se no retângulo que se estende da África ocidental através da Ásia, entre os graus 10 e 40 a norte do equador, incluindo o bloco muçulmano e o bloco budista, ou seja, bilhões de pessoas à espera da conversão.
Ao que é possível obter de informações nos sites das igrejas como a Universal do Reino de Deus, e em pesquisas acadêmicas variadas, as missões são estudadas com bastante antecedência por uma comissão que visita o país ou região de destino e elabora uma espécie de dossiê avaliando as probabilidades de sucesso, a legislação local, os trâmites relacionados à existência jurídica da Igreja e, sobretudo, a cultura local. Contexto nacional, linguagem apropriada, classes e modos de vida específicos, localização ideal dos templos com vias de acesso e sem concorrências, compra ou preferencialmente o aluguel de um imóvel com as proporções adequadas, arrecadamento estimado dos dízimos... A fé evangélica é também uma empresa de porte multinacional, embora esteja longe de se reduzir a isso.
Movidas especialmente pela adesão global de populações pobres, com baixos graus de instrução, não-brancas, jovens, e mulheres, tudo indica que essas igrejas buscam e produzem fieis cada vez mais diferentes entre si, marcados por histórias nacionais e individuais muito particulares, parecidos com a sociedade em que vivem mas, ao mesmo tempo, sensíveis a um discurso que universaliza sentimentos velhos conhecidos do povo brasileiro.
Desde a síndrome de vira latas criada por Nelson Rodrigues, até a opressão sentida pelas tribos indígenas latino-americanas, agora fortalecidas pelo poder eleitoral dos evangélicos, a exclusão social, no caso dos imigrantes nos Estados Unidos, e a diversidade, marca de nossa identidade histórica e cultural, agora oferecida aos russos, aos chineses, e aos países muçulmanos mais radicais... Não sem algum custo, é claro.
Fonte : http://revistadehistoria.com.br/secao/artigos/evangelizacao-a-brasileira