segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

E se D. João VI não tivesse vindo?


Desde o início da Revolução Francesa (1789) e, sobretudo, desde a execução de Luís XVI em 1793, o ambiente nas cortes européias era de inquietação. Em Portugal e na Espanha, era também de temor, devido à ligação familiar de seus soberanos com os Bourbon de França. Este enlace vinha desde Felipe V (1683-1746), neto de Luís XIV, que inaugurara o reinado dos Bourbon na Espanha. Em Portugal, a presença dos Bourbon era representada por Carlota Joaquina, mulher do príncipe regente.
 
Guilhotinado Luís XVI, declararam guerra à França o rei da Espanha, Carlos IV, e seu genro, o príncipe regente português D. João VI. Mas a Espanha não era mais, como nos tempos de Felipe II, uma das primeiras potências da Europa. Apenas dois anos depois, celebraria com a França Revolucionária os tratados de paz de Basiléia, que obrigaram Portugal a recuar também.
A situação piorou consideravelmente a partir de 1799, quando Napoleão Bonaparte, encorajado pelas vitórias na Itália e no Egito, foi eleito primeiro cônsul. O corso lançou então uma campanha que transformou em pânico o que antes era apenas  preocupação entre as monarquias européias. Uma após outra, Áustria, Prússia e Rússia, as principais potências, foram derrotadas e forçadas a assinar tratados desvantajosos, quando não humilhantes. Somente a Grã-Bretanha se mantinha de pé, protegida pela geografia e pela força de sua Marinha de Guerra. Em 1801, o único país continental que ainda não rompera com a Coroa britânica, por pressão de Napoleão, era o pequeno Portugal.
A corte portuguesa – governada desde 1792 pelo príncipe regente D. João em decorrência da doença de sua mãe, D. Maria I – vivia um impasse, pressionada em terra por Napoleão e no mar, pela Grã-Bretanha. O príncipe regente angustiava-se. Não fora educado para governar e não gostava de governar. Tornara-se herdeiro forçado do trono após a morte do irmão mais velho, D. José, em 1788. De natureza pacífica e tímida, hesitava diante de decisões difíceis. E nada mais difícil do que aquilo que o desafiava. Sua própria corte dividia-se entre simpatizantes dos ingleses (anglófilos), como D. Rodrigo de Sousa Coutinho, primeiro conde de Linhares, e dos franceses (francófilos), como Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha, segundo conde da Ega, e Antônio de Araújo e Azevedo, primeiro conde da Barca. D. João buscava equilibrar-se na missão quase impossível de não desagradar a nenhum dos dois lados. Mas o cerco se estreitava.
Em 1801, a França convenceu a Espanha, sua aliada, a assinar um ultimato conjunto exigindo de Portugal o rompimento com a Grã-Bretanha. Sem esperar pela negociação, forças espanholas, comandadas pelo poderoso primeiro-ministro Manuel de Godoy, invadiram o Alentejo e o dominaram em apenas 18 dias, no que ficou conhecido como a Guerra das Laranjas (1801). No mesmo ano, Portugal foi forçado a assinar um tratado humilhante em Badajoz, obrigando-se a fechar os portos e o território à Grã-Bretanha.
As seguidas vitórias de Napoleão agravavam a situação do governo português e faziam crescer a influência do partido francês. Araújo e Azevedo tornou-se ministro dos Negócios Estrangeiros em 1803, quando foi assinado o Tratado de Madri, que estabelecia a neutralidade entre França, Portugal e Espanha. No ano seguinte, o general Andoche Junot foi nomeado ministro francês na corte portuguesa. Carlota Joaquina tentou dele se aproximar no intuito de selar a paz entre os dois países. Para D. João, no entanto, a pressão revelou-se excessiva. Em 1805, ele entrou em profunda depressão, isolando-se entre os frades do convento de Mafra. A loucura da mãe, D. Maria I, fazia com que surgissem os piores receios sobre a natureza de sua doença.
O isolamento do regente deu motivo a um complô palaciano, chamado de Conspiração do Alfeite (1805-6). Os conspiradores visavam interditar o príncipe e entregar a regência a Carlota Joaquina. Descobertos, D. João impediu que fossem punidos com o rigor da lei. Mas seu estado não melhorou. Em 13 de agosto de 1806, a própria Carlota Joaquina escreveu à mãe, Maria Luísa, rainha de Espanha, dizendo que D. João estava “con la cabeza perdida quasi del todo” e pedindo uma intervenção em favor dela e de seus filhos. No ano seguinte, Napoleão deu mais uma volta no torniquete. Tendo derrotado os russos em junho na batalha de Friedland, sentiu-se livre para se voltar para o outro extremo da Europa, impaciente com as contemporizações portuguesas e insatisfeito com os acordos com a Espanha.
Em agosto, intimou Portugal a cortar totalmente as relações com a Grã-Bretanha, aderir ao bloqueio continental e seqüestrar os bens dos súditos britânicos, ao mesmo tempo em que concentrava tropas na fronteira com a Espanha, sob o comando de Junot. A corte de Lisboa continuou o jogo duplo. Em setembro, aderiu ao bloqueio continental, que fechava todos os portos europeus ao comércio com a Inglaterra. No mês seguinte, celebrou uma convenção secreta com os britânicos, contemplando a possível transferência da corte para o Brasil e a abertura dos portos coloniais. No mesmo mês, França e Espanha assinaram o Tratado de Fontainebleau, pelo qual decidiam a partilha de Portugal. Araújo e Azevedo ainda enviou o marquês de Marialva para tentar negociar, levando diamantes de presente. Mas o marquês não passou de Madri. Em outubro, Napoleão mandou Junot entrar na Espanha com 28 mil homens, a caminho de Lisboa. Jogando uma última cartada, D. João decretou a prisão dos súditos britânicos e o seqüestro de seus bens. O ministro britânico Lord Strangford fechou a legação, deixou Lisboa e recolheu-se aos navios da esquadra britânica ancorada perto da foz do Tejo.
A 17 de novembro, as tropas francesas entraram em Portugal atropeladamente, em desabalada carreira em direção a Lisboa, sem encontrar resistência. Na capital, corriam boatos sobre o possível embarque de D. Pedro, o príncipe da Beira, uma criança de 9 anos de idade, ou de toda a família real. Carlota Joaquina desesperava-se diante da possibilidade de ter que embarcar para o Brasil, e repetia as súplicas à mãe para que a socorresse e mandasse buscar suas filhas. Em resposta, Maria Luísa prometeu intervir caso D. João abandonasse a mulher e partisse sozinho para o Brasil. A hipótese também tornaria possível uma eventual incorporação de Portugal, talvez sob a regência da própria Carlota Joaquina.
No dia 25 de novembro, houve uma tensa reunião do Conselho de Estado para decidir sobre o que fazer. Ficar ou não ficar era a questão. Uma escolha de Sofia, de vez que não havia opção sem altos custos. Ficar significava correr o risco de humilhação da família real, de retaliação dos britânicos, que em setembro já tinham bombardeado Copenhagen, e de perda do Brasil, que representava 80% do comércio externo de Portugal com suas colônias e 60% de todas as exportações portuguesas. Fugir, além de humilhante, significava trair os súditos, abandonar o reino aos inimigos, enfrentar a ira da população já agitada de Lisboa, incorrer ainda mais no ódio da esposa (e, quem sabe, na reação dos sogros), além de arrostar os inúmeros perigos de uma viagem marítima de quarenta e cinco dias com toda a família, milhares de cortesãos e grande quantidade de valores.
A timidez do regente, seu medo do risco, o apego a seu país e seus súditos, o receio da reação da esposa e dos sogros e as esperanças de um acordo final com os franceses falaram mais alto. Contrariando a opinião dos conselheiros, o príncipe regente D. João tomou a mais importante decisão de sua vida. Resolveu ficar.
O episódio dramático ficou conhecido na história portuguesa como o Dia do Fico. As conseqüências da decisão são conhecidas. Os franceses levaram a família real para o exílio na França, permitindo que Carlota Joaquina voltasse para a casa dos pais na Espanha, e passaram a governar com o apoio de seus amigos na corte portuguesa: o conde da Ega, cuja mulher se tornou amante de Junot, Araújo e Azevedo, o marquês de Alorna e outros.
Pelo lado da Grã-Bretanha, Canning, ministro dos Negócios Estrangeiros, levando em consideração a longa história de amizade com Portugal, decidiu não bombardear Lisboa. Contentou-se em ordenar a Lord Strangford que confiscasse a esquadra portuguesa para que não caísse nas mãos dos franceses. Mas fez também o que mais lhe interessava: pôs em prática o dispositivo da convenção secreta de setembro que lhe abria os portos das colônias portuguesas, sobretudo do Brasil.
O infortunado D. João não resistiu ao impacto dos acontecimentos e às agruras do exílio. Sua depressão agravou-se e o levou à morte em 1812. Um ano depois, seguia-o sua não menos desventurada mãe, a rainha D. Maria I.
Na corte espanhola, Carlota Joaquina retomou suas confabulações políticas, mas por pouco tempo. Em julho de 1808, Napoleão forçou Fernando VII, filho de Carlos IV, a devolver o governo ao pai. Deste, exigiu que renunciasse em favor de seu irmão, José Bonaparte. A família real espanhola reuniu-se à portuguesa no exílio. Mas com o início da queda de Napoleão após a batalha de Leipzig, em outubro de 1813, Fernando VII foi libertado e regressou à Espanha com Carlota Joaquina. Mais hábil que o irmão, a princesa negociou com as cortes a sucessão ao trono espanhol, usando como chamariz a proposta de reunir as duas coroas, uma vez que era a legítima regente do trono português. Com o apoio de seus partidários em Lisboa, conseguiu concretizar a fusão, criando a União Monárquica Ibérica, uma retomada da União Ibérica de 1580. Mais de século e meio mais tarde, a Constituição espanhola de 1978 conferiu a Portugal o estatuto de Comunidade Autônoma da União Monárquica Ibérica.
Enquanto tudo isso se passava na Europa, as colônias espanhola e portuguesa na América entraram em fase de grande turbulência. Desaparecida a fonte de legitimidade monárquica que por três séculos sustentara a unidade dos dois sistemas, as forças centrífugas se manifestaram e teve início o processo de desagregação. Cada vice-reinado, cada capitania-geral, cada audiência e até mesmo cada municipalidade julgou-se no direito de decidir a quem obedecer. Para abreviar a história, na América espanhola os quatro vice-reinados e quatro capitanias-gerais se tinham transformado, em 1830, em 16 repúblicas independentes, organizando-se todas pelo modelo norte-americano. Posteriormente, acrescentaram mais dois países, Cuba e Panamá.
Na América portuguesa, as coisas não se passaram de modo muito distinto. Das 18 capitanias-gerais existentes em 1808, as de maior peso econômico movimentaram-se no sentido de construir a seu redor novos centros de poder político. Como no lado espanhol, a luta foi longa e marcada por guerras civis, rebeliões, repressões. O processo teve início, como não podia deixar de ser, em Pernambuco. Já em 1801, os participantes da Conspiração dos Suassunas tinham buscado o auxílio de Napoleão para se libertarem de Portugal. Com a prisão da corte portuguesa, voltaram à ação. Havia, no entanto, uma divisão básica entre os rebeldes. De um lado, os ideológicos do Areópago de Itambé (primeira loja maçônica do Brasil, fundada em 1796) e do Seminário de Olinda, padres em sua maioria, mais liberais, contrários à escravidão. De outro, os Suassunas e demais senhores de engenho, que não admitiam a abolição. Depois de muitas batalhas, criou-se a República dos Estados Unidos do Equador, que incorporava as capitanias vizinhas: Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. A escravidão foi mantida, adotando-se um dispositivo constitucional que previa futuras medidas abolicionistas.
A transição mais tranqüila, ou menos tumultuada, verificou-se nas capitanias vizinhas à sede do vice-reino. Os antigos inconfidentes mineiros, apoiados em seus parentes paulistas, retomaram a luta independentista e negociaram com os comerciantes do Rio de Janeiro um pacto federativo. O esforço foi facilitado porque as tropas portuguesas haviam sido deslocadas pela Grã-Bretanha para auxiliar na luta contra a França na Península Ibérica. As unidades federadas adotaram o nome de República dos Estados Unidos do Brasil, mantendo-se o Rio de Janeiro como capital. A nova Constituição também manteve a escravidão. A capitania do Espírito Santo também aderiu à federação. Em 1930, em decorrência de seu rápido desenvolvimento econômico, São Paulo separou-se dos Estados Unidos do Brasil, constituindo a República Bandeirante.
Mais trabalhosa e violenta foi a batalha na capitania-geral da Bahia. As “francesias” (idéias sobre a Revolução Francesa) já lá haviam chegado em 1798, quando inspiraram o que se chamou de Conspiração dos Alfaiates. Vieram sob a forma de livrinhos subversivos distribuídos pelo comandante Larcher, da fragata La Preneuse. Além disso, houvera em 1806 uma revolta escrava em Salvador, e outra mais séria se dera em 1809 no Recôncavo. Os remanescentes dessas revoltas e conspirações voltaram a agir após a deposição do regente. Mas o poder econômico estava nas mãos dos senhores de engenho do Recôncavo e dos grandes traficantes de escravos de Salvador. Após prolongada guerra civil e racial, venceram os mais fortes. A parceria comercial com potentados africanos foi fortalecida com a preciosa ajuda do baiano Francisco Félix de Souza, traficante de escravos em Ajudá. No final, criou-se o Reino Unido da Bahia e da Guiné, a que aderiu a capitania de Sergipe del Rei. Sobrevindo a partilha da África pelas potências européias no final do século XIX, dissolveu-se o Reino Unido, e a Bahia tornou-se uma república.
Na capitania-geral de Rio Grande de São Pedro do Sul, a comunhão de interesses com a Banda Oriental, sempre receosa do expansionismo de Buenos Aires, levou à solução natural da união, resultando do acordo a formação da República dos Pampas, com capital em Montevidéu. A ela aderiu a capitania de Santa Catarina. O tráfico de escravos foi abolido e se deu logo início ao processo de gradativa abolição da escravidão.
Finalmente, a situação mais complexa verificou-se na área do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará. Não contando com centro econômico hegemônico, a região envolveu-se em longo período de turbulência, o que provocou a intervenção inglesa. Só em 1850 é que se consolidou o novo Estado que herdou o mesmo nome do antigo, sob uma forma republicana de governo, mantendo-se a escravidão.
Ao longo de todo esse processo de formação dos novos estados, a Grã-Bretanha esteve sempre vigilante para garantir o livre acesso aos mercados. Exerceu também constante pressão no sentido de interromper o tráfico de escravos, negociando tratados com cada um dos cinco novos países, com exceção do Estado do Maranhão e Grão-Pará, onde proibiu o tráfico logo após a intervenção.
Diante dessa evolução da colônia portuguesa da América, fica-se a pensar sobre como teria sido seu destino caso o príncipe D. João tivesse optado por abandonar Portugal para fugir das tropas de Junot. O historiador pode, sem dúvida, imaginar futuros alternativos como exercício mental. Difícil  é dizer se seriam melhores ou piores do que a realidade.
José Murilo de Carvalho é professor titular da UFRJ e autor de Dom Pedro II: Ser ou não ser (São Paulo: Companhia das Letras, 2007)